Caros colegas educadores aqui presentes
Prezados pais e demais familiares
Peço a vocês permissão para me dirigir especialmente aos meus queridos alunos
Vamos combinar uma coisa: professor fala demais, não é mesmo? Principalmente alguns que falam das sete ao meio dia, continuam falando no corredor, com quem quer que lhes dirija a palavra,sentam no banquinho perto da reprografia e continuam falando, na hora do almoço com os colegas contam mil casos e ainda voltam para falar mais um turno, até às quatro da tarde. E isso é o que a gente vê. Alguma semelhança com alguém que vocês conheçam? Mera coincidência...
Apesar dessa nossa vocação para o uso da voz, nesse fim de ano, ao pensar na mensagem que iria trazer para vocês, me vieram à lembrança as coisas que eu não falei. Nas vezes em que alguém perguntava qualquer coisa no corredor, e que eu não tinha tempo para responder porque outra turma me esperava no andar de baixo. Lembrei dos momentos em que a pergunta exigia uma resposta tão complexa, que eu preferia mudar de assunto.Reli os bilhetes que muitos me enviaram do dia do professor e pensei o quanto gostaria de comentar o que estava escrito ali, mas... o tempo passava, o programa é muito grande, e... a resposta não foi dada.
Agora não. Essa minha fala é uma resposta a algumas perguntas que, de forma diferente, talvez com outras palavras, sempre apareceram durante este ano que está findando.Muitas das perguntas foram fruto, para minha alegria, da compreensão de que a História não era apenas uma matéria a ser aprendida, mas alguma coisa que tem , e muito, a ver com a vida da gente. As respostas, espero, ficarão para todos vocês como reflexão e como lembrança desta professora, que apesar de falar tanto, gostaria de deixar mais algumas palavras gravadas nos seus corações.
A primeira pergunta que apareceu, assim que vocês começaram a me conhecer melhor foi: Professora, você é de esquerda?
Respondia que sim, mas sempre achei que era pouco. Alguns me contestavam: mas o comunismo não acabou?
Respondo agora : sim, o comunismo acabou, e acabou mal: na URSS a estrutura do Estado reproduzia a autocracia do Czar e do império russo, tal como acontece ainda na Coréia do Norte. Na China, o Partido Comunista constituiu uma oligarquia que impede a participação democrática. Em Cuba, bloqueada há mais de quatro décadas pela Casa Branca, o monopartidarismo também inibe a oxigenação da esfera política através do debate público e da organização da sociedade civil em movimentos sociais autônomos. Em muitos outros países a esquerda desmoralizou-se e esvaziou a força de suas propostas ao abraçar práticas e métodos políticos típicos de seus adversários e inimigos, trocando a ética e os princípios ideológicos pela busca pragmática de resultados.
E mesmo assim alguém pode se dizer de esquerda?
O que é ser de esquerda hoje? Para mim, é principalmente, não perder a capacidade de indignação com a injustiça Para o pensador Norberto Bobbio, a direita considera a desigualdade social tão natural quanto a diferença entre o dia e a noite. A esquerda considera-a como uma aberração a ser erradicada. O capitalismo, vigente há duzentos anos, fracassou para a maioria da população mundial. Hoje, somos mais de seis bilhões de habitantes no planeta. Segundo o Banco mundial, dois bilhões e oitocentos mil desses habitantes sobrevivem com menos de dois dólares por dia. E um bilhão e duzentos milhões, com menos de um dólar por dia.
Isso significa o fracasso do capitalismo para 2/3 da humanidade. Dele tiram proveito apenas aqueles, como nós todos aqui presentes, que tivemos a sorte de nascer numa família e numa classe social livres da ameaça letal da miséria. Injusto é permitirmos que a vida de tantos seja determinada por tão seletiva loteria e que não vejamos essa premiação com a qual fomos agraciados, como dívida social, que, de alguma forma, devemos pagar.
Ainda ouso esperar uma outra lógica na política, na qual a economia esteja sujeita aos direitos sociais; o progresso, ao desenvolvimento sustentável; as relações exteriores , ao pleno respeito à auto-determinação dos povos; e o Estado, à soberania e ao controle populares.
Também ouvi nesse ano de eleições a célebre pergunta: Professora, você acha que eu devo ir votar? Sempre respondi que sim. Por que? Porque a política é demasiado importante para ficar nas mãos de políticos profissionais e se apequenar em conchavos partidários e vaidades eleitoreiras. É a política que decide os rumos de um povo, em direção ao atraso e à barbárie ou à civilização do amor. Cabe a essa geração definir o perfil do “outro mundo possível” e escolher os meios de construí-lo. A meu ver, apenas a democracia, capaz de assegurar a todos a participação nos projetos políticos e nos bens tecnológicos, científicos e culturais, permitirá que o nosso pequeno e atribulado planeta sobreviva à destruição bélica e ambiental, favorecida pela concentração da riqueza em mãos de uma minoria em detrimento da maioria.
Nos últimos dias, veio também uma pergunta meio angustiada: Agora, que vamos entrar mesmo no mundo dos adultos, vem essa crise. O que vamos fazer diante dela? A primeira coisa que devemos nos lembrar é que não vivemos apenas numa época de mudanças; vivemos uma mudança de época. A última vez que isso aconteceu no Ocidente foi na passagem do período medieval para o período moderno, nos séculos XV e XVI. Agora, passamos do período moderno para o período denominado de pós-moderno. As coisas acontecem e se repetem e para sairmos melhores de uma crise, qualquer uma, de qualquer tipo, é preciso que vejamos nela a chance de uma nova vida. Mas há uma condição: enfatizar as forças positivas contidas na crise e ter a coragem de reformular ou inventar respostas que integrem as várias dimensões da vida. Espero que este abalo na especulação financeira traga novos paradigmas à humanidade: menos consumismo e mais modéstia no padrão de vida: menos competição e mais solidariedade entre pessoas e empreendimentos; menos obsessão por dinheiro e mais por qualidade de vida. Trabalhem e se engajem profundamente na realização de um sonho que corresponda aos desafios da crise, abertos à crítica e à auto-crítica, dispostos a aprender sempre, principalmente agora, que estarão delineando a sua vida profissional.
E finalmente, a última pergunta que me foi feita por um grupinho de meninas que estudava literatura quando entrei na sala: Professora, para você, qual a mais bela palavra da língua portuguesa? E eu fiquei de pensar e agora respondo: COMPAIXÃO. Por que? Porque é única das grandes palavras pela qual não se fere, não se tortura, não se aprisiona e não se mata ninguém...Antes, pelo contrário, ela evita tudo isso. Há outras palavras muito belas: amor, liberdade, honra, justiça... Mas todas, absolutamente todas podem ser manipuladas, podem ser lançadas como armas e causar vítimas. Por amor ao seu Deus os cruzados acenderam piras e os homens-bombas se lançam sobre inocentes. Em nome desse mesmo amor, os amantes ciumentos matam suas amadas. Os nobres maltrataram seus servos e abusaram barbaramente deles em nome de sua suposta honra. O mesmo fizeram soldados em milhares de guerras: a defesa da “Honra” nacional. A liberdade de uns pode implicar prisão e morte para outros; quanto à justiça, todos crêem tê-la do seu lado, inclusive os tiranos mais atrozes. Somente a compaixão impede esses excessos; é uma idéia que não se pode impor a sangue e fogo sobre os outros, porque nos obriga a fazer exatamente o contrário, a nos aproximarmos dos demais, a senti-los, a entendê-los. A compaixão é o núcleo do melhor que nós, seres humanos, somos capazes de ser e espero que vocês , meus queridos, a guardem com cuidado, no fundo do coração. A crença que , de alguma forma, por um mínimo que seja, eu tenha podido contribuir para isso, justifica toda minha carreira de professora de História. Muito obrigada pela homenagem!